segunda-feira, 18 de março de 2024

Ouvir a voz das minhas manas!

Neltinha Oliveira dos santos

Sou uma viajante do tempo com o poder da imortalidade! Defini que usaria esse poder para viajar, viajar e viajar. Não só por cidades grandes, mas também por cidades pequenas, mas, de modo especial e muito carinhoso, por todas as comunidades do campo de todos os países. Como gastar tanto tempo de uma vida eterna?! Ainda não sei! É muito tempo de vida e preferi ir definindo por etapas. Durante as minhas viagens nesse período de duzentos anos que completei ontem, procurei observar cuidadosamente a vida das minhas manas e para isso, criei duas perguntas que fazem queimar o meu coração: _onde está a voz das minhas manas?! _onde está a vez das minhas manas?!

Em todas as comunidades que eu chegava, percebia a existência de muitas vozes, mas tinha algo que me incomodava profundamente porque eram vozes silenciadas! É paradoxal, eu sei, mas percebi que era assim mesmo! As vozes das minhas manas escondiam verdades! As vozes das minhas manas escondiam duras realidades! As vozes das minhas manas escondiam sofrimentos! Estavam presas e isso encurralou até os seus sonhos mais doces. Mas como é que se prende a voz de alguém? E gastei um tempo pensando... A voz não é um objeto que prendo dentro da minha mão ou dentro de uma gaiola. Percebi que essa prisão era diferente! Essa prisão acontecia por meio das proibições!

Fui me tornando uma viajante cada vez mais curiosa e atenta aos detalhes de cada modo de vida que tinha a oportunidade de conhecer e conviver! As vozes de proibição eram quase sempre masculinas e eram proclamadas em alto e bom tom: _minha esposa fica dentro de casa! Onde já se viu minha mulher andando solta por aí? Como já dizia meu antigo avô (que Deus o tenha) mulher minha tem que cuidar da casa, dos filhos, da família...se for sair, somente para ir à igreja.

Certo dia, eu estava bisbilhotando o jantar de uma família: eram o pai, a mãe, duas filhas e dois filhos. Inicialmente fiquei feliz ao presenciar aquela cena, mas fui aproximando o meu olhar e enxerguei muitas proibições e todas estavam direcionadas às mulheres. O pai dizia: _minha filha conserta esse jeito de sentar, cruze essas pernas! E dizia para a outra filha: _por que você está rindo? Mulher não pode rir à toa! Se contenha!

Naquela cena terrível, a mãe não defendia suas filhas! Permanecia calada! E assim, o ritual do jantar se iniciava. Por muitos anos me deparei com o mesmo padrão: o patriarca coloca a sua comida e só depois os outros tem o direito de servir o seu prato.

Depois de um tempo, calados e comendo, a esposa, muito timidamente, perguntou ao marido se poderia participar do grupo de roda de cultura da comunidade! Os meus ouvidos sangraram quando o homem disse: _se você participar dessa safadeza pode pegar as suas coisas e ir embora...você escolhe!

Saí de perto daquela casa e me sentei num banquinho debaixo de um lindo pé de Imbiruçu que se localizava há alguns metros de distância. Pensei sobre o silêncio da voz das minhas manas e considerei que os homens faziam as minhas manas silenciarem e considerei que existia uma lei maior que dizia que o homem devia ser daquele jeito grotesco e brutal. Considerei também que a cultura foi moldada e enquadrada dentro de um princípio de que se o homem fala a mulher obedece.

Desde os meus quinze anos de vida até ontem que completei duzentos anos, eu continuo assistindo cenas muito parecidas.

Mas ainda tinha a minha segunda pergunta: _onde está a vez das minhas manas?! E considerei que não existia vez, porque antes de tudo não existia voz!

As mudanças climáticas: agora é possível sentir?

 Autoras: Laís Marcelina Azevedo, 17 anos, 3º ano do Ensino Médio Integrado ao Curso Técnico em Agropecuária; Patrícia Sousa Azevedo, 17 anos, 3º ano do Ensino Médio Integrado ao Curso Técnico em Agropecuária. Revisão: Neltinha Oliveira dos Santos.

Há muito tempo, o debate a respeito das mudanças climáticas vem ocupando as agendas de muitos países ganhando alcance de nível global. Ainda é recente nas pequenas cidades e nas comunidades rurais brasileiras a problematização desse assunto. Vale ressaltar que os agricultores familiares já sentiam essas mudanças, além de vivenciarem esses impactos na pele.

No Brasil, o período chuvoso ocorre de forma mais intensa durante os meses de outubro, novembro e dezembro, no entanto, em 2023, houve grande falta de chuva que afetou do pequeno agricultor ao grande produtor, significando um marco para que essa temática fosse apontada com caráter de urgência.

Essas mudanças podem ser percebidas com a intensidade dos períodos da seca, o aumento da escassez de água, diminuição do lençol freático, a incidência de altas temperaturas, a ocorrência de ventanias muito fortes, maior frequência de raios e chuva de granizo, a perda de sementes, prejuízos nas lavouras e dentre outros.

O fator mais agravante, sem dúvida, é a falta de água e as mulheres são as mais afetadas, pois os seus afazeres, em grande maioria, estão diretamente relacionados com o uso da água. A autonomia da mulher na gestão das suas atividades é altamente precarizada, além da redução das suas práticas produtivas e de geração de renda. Desse modo, percebe-se que as mudanças climáticas contribuem para o aumento da desigualdade de gênero.

No Vale do Jequitinhonha, o trabalho da EFAV e do CAV em defesa da agroecologia, da educação do campo e a implantação de tecnologias sociais de captação de água da chuva amenizam esses impactos ambientais, possibilitando alternativas de geração de renda para as famílias camponesas, além do processo de formação política das mulheres. A presença da EFAV, no território é muito potente que se projeta no presente, a formação dos jovens e, no futuro, adultos, comprometidos com a produção e reprodução da vida humana e da natureza.