Neltinha
Oliveira dos santos
Sou
uma viajante do tempo com o poder da imortalidade! Defini que usaria esse poder
para viajar, viajar e viajar. Não só por cidades grandes, mas também por
cidades pequenas, mas, de modo especial e muito carinhoso, por todas as
comunidades do campo de todos os países. Como gastar tanto tempo de uma vida
eterna?! Ainda não sei! É muito tempo de vida e preferi ir definindo por
etapas. Durante as minhas viagens nesse período de duzentos anos que completei
ontem, procurei observar cuidadosamente a vida das minhas manas e para isso,
criei duas perguntas que fazem queimar o meu coração: _onde está a voz das minhas
manas?! _onde está a vez das minhas manas?!
Em
todas as comunidades que eu chegava, percebia a existência de muitas vozes, mas
tinha algo que me incomodava profundamente porque eram vozes silenciadas! É
paradoxal, eu sei, mas percebi que era assim mesmo! As vozes das minhas manas
escondiam verdades! As vozes das minhas manas escondiam duras realidades! As
vozes das minhas manas escondiam sofrimentos! Estavam presas e isso encurralou
até os seus sonhos mais doces. Mas como é que se prende a voz de alguém? E
gastei um tempo pensando... A voz não é um objeto que prendo dentro da minha
mão ou dentro de uma gaiola. Percebi que essa prisão era diferente! Essa prisão
acontecia por meio das proibições!
Fui
me tornando uma viajante cada vez mais curiosa e atenta aos detalhes de cada
modo de vida que tinha a oportunidade de conhecer e conviver! As vozes de
proibição eram quase sempre masculinas e eram proclamadas em alto e bom tom:
_minha esposa fica dentro de casa! Onde já se viu minha mulher andando solta
por aí? Como já dizia meu antigo avô (que Deus o tenha) mulher minha tem que
cuidar da casa, dos filhos, da família...se for sair, somente para ir à igreja.
Certo
dia, eu estava bisbilhotando o jantar de uma família: eram o pai, a mãe, duas
filhas e dois filhos. Inicialmente fiquei feliz ao presenciar aquela cena, mas
fui aproximando o meu olhar e enxerguei muitas proibições e todas estavam direcionadas
às mulheres. O pai dizia: _minha filha conserta esse jeito de sentar, cruze
essas pernas! E dizia para a outra filha: _por que você está rindo? Mulher não
pode rir à toa! Se contenha!
Naquela
cena terrível, a mãe não defendia suas filhas! Permanecia calada! E assim, o
ritual do jantar se iniciava. Por muitos anos me deparei com o mesmo padrão: o
patriarca coloca a sua comida e só depois os outros tem o direito de servir o
seu prato.
Depois
de um tempo, calados e comendo, a esposa, muito timidamente, perguntou ao
marido se poderia participar do grupo de roda de cultura da comunidade! Os meus
ouvidos sangraram quando o homem disse: _se você participar dessa safadeza pode
pegar as suas coisas e ir embora...você escolhe!
Saí
de perto daquela casa e me sentei num banquinho debaixo de um lindo pé de
Imbiruçu que se localizava há alguns metros de distância. Pensei sobre o
silêncio da voz das minhas manas e considerei que os homens faziam as minhas
manas silenciarem e considerei que existia uma lei maior que dizia que o homem
devia ser daquele jeito grotesco e brutal. Considerei também que a cultura foi
moldada e enquadrada dentro de um princípio de que se o homem fala a mulher
obedece.
Desde
os meus quinze anos de vida até ontem que completei duzentos anos, eu continuo
assistindo cenas muito parecidas.
Mas
ainda tinha a minha segunda pergunta: _onde está a vez das minhas manas?! E
considerei que não existia vez, porque antes de tudo não existia voz!